Estônia: como a melhor educação do Ocidente ajudou a construir o país mais digital do mundo
A Estônia hoje é não só considerada a nação mais digital do planeta, mas também a melhor educação do mundo ocidental.
E não é por acaso. O início desta construção remonta à conquista de sua independência frente à URSS em 1991, quando a Estônia se viu numa situação paradoxal: livre, porém pobre e com sérios problemas estruturais.
A grande primeira pergunta então, seria: quais foram as estratégias que possibilitaram ao país esta tamanha reinvenção (e revolução)?
Neste artigo, pretendemos ilustrar a trajetória de transformação da Estônia, com destaque para a área da educação e sua interligação com a tecnologia.
Também fornecemos uma visão geral da estrutura e funcionamento do ecossistema educacional e quais são as principais sinergias, aprendizados e oportunidades para o Brasil e seus atores públicos e privados.
Por fim, falaremos sobre o futuro – tendências e desafios da Estônia no âmbito de educação e tecnologia.
O (re)início de tudo:
Como mencionado, a Estônia reconquista sua independência em 1991. Neste ano, o grande choque de realidade acontece quando os estonianos compararam sua renda per capita com a da Finlândia (país que não foi parte da URSS). Em 1940, a proporção de renda per capita entre ambos era de 1:1. Ou seja, um estoniano podia-se considerar tão rico quanto um finlandês. Porém, 50 anos depois, em 1991, esse mesmo comparativo evidenciou o abismo de riqueza aberto entre os dois países, com a Finlândia 15 vezes mais rica que a Estônia!
Fonte: Country Economy, 2022.
Este choque foi bem utilizado pelos estonianos, como gatilho para um redesenho do país e mobilização nacional e, principalmente, senso de urgência para tomada de decisões críticas.
Em nosso modelo de análise da estratégia de transformação holística da Estônia, destacamos uma série de elementos como vontade política, legislação, educação, saúde, ambiente de negócios e investimentos, tecnologia e, principalmente, sociedade civil.
MODELO DE TRANSFORMAÇÃO ESTONIANO
É possível também destacar que, todo este esforço estava direcionado a alguns objetivos, entre eles o aumento da renda per capita. Para tanto, seria indispensável dispor de uma nova geração de cidadãos e profissionais altamente educados.
Nesta jornada de reinvenção do país, o caminho natural seria reconstruir a estrutura tradicional de administração pública. Porém, a Estônia à época não dispunha de recursos e nem de tempo para tanto.
É neste momento que uma convergência de fatores resulta em uma ousada (e acertada) decisão: sair do passado, pular o presente e ir direto para o futuro.
Na área educacional, o foco estava em: i) oportunidades iguais para todos, com oferta de ensino público, gratuito e próximo do local de residência; ii) criação de um currículo nacional base, que desse espaço e flexibilidade para a sua adaptação por escolas e professores; iii) qualificação acadêmica dos professores em todos os níveis educacionais; iv) infraestrutura escolar e digital, com foco no acesso à internet e capacitação de professores.
A segunda grande pergunta então, seria: deu certo?
Como observado nos gráficos referentes à evolução do PIB per capita na Estônia, é possível dizer que sim, deu certo.
Fonte: Country Economy, 2022.
E, o mesmo pode ser dito do sistema educacional, uma vez que o país é hoje considerado a melhor educação básica do Ocidente pelo PISA (2018), e sua evolução no ranking é visível, também, desde a implementação de novas políticas para o redesenho do sistema educacional estoniano, se tornando um case de sucesso na área de educação.
A educação na Estônia é extremamente valorizada, como já citada, e um dos pilares fundamentais para a estrutura do país, inclusive para fomento do ecossistema de inovação e empreendedorismo, como com o programa EDU ja Tegu. O sistema educacional no país é gratuito e financiado pelo Estado, o qual contribui com 6,8% de seu PIB para o setor.
O ensino formal na Estônia data dos séculos 13 e 14, quando os primeiros conventos e escolas catedrais foram fundados. Hoje, o país combina o aprendizado com o acesso igualitário à tecnologia para criar o melhor sistema educacional do Ocidente.
O sistema educacional estoniano permite autonomia às escolas, dando liberdade para os professores elaborarem e adaptarem seu próprio currículo, incluindo escolherem os livros didáticos e os métodos de ensino que consideram apropriados para os seus objetivos e focos de estudo. Já os diretores podem demitir e contratar novos professores, alocar como preferirem o orçamento escolar e avaliar a necessidade de treinamento dos professores.
São três os tipos de escola na Estônia, a geral, a vocacional e a de hobby. Nas escolas gerais, foi lançado em 2016 pelo Ministério da Educação e Pesquisa o Programa de Empreendedorismo e Carreira Educacional EDU ja Tegu (Success and Action).
O objetivo do programa é poder dar aos estudantes a oportunidade de vivenciar o empreendedorismo na prática e desenvolver as competências empreendedoras que podem ser usadas por toda sua vida em diferentes contextos. O Programa também permite o estudante ter um papel mais ativo no planejamento da sua carreira.
Atualmente, o foco do programa é uma abordagem mais ampla que foca no desenvolvimento da proatividade e do mindset empreendedor dos jovens.
Até 2021, a educação empreendedora já era implementada em 381 escolas de educação geral, o que representa 71% de todas elas.
Para ser avaliada como a melhor educação do Ocidente pelo PISA, e ter uma taxa de 94% de crianças até 7 anos matriculadas nas escolas, alguns players são fundamentais para o funcionamento e estabelecimento do sistema educacional estoniano, Entre eles:
- O HARNO (Education and Youth Authority), agência governamental do Ministério da Educação e Pesquisa, que lida com a implementação de políticas de educação destinadas a crianças e adolescentes;
- O Education Estonia, uma iniciativa do governo estoniano para a cooperação internacional na área de educação, que busca replicar as melhores práticas do sistema educacional da Estônia em outros países;
- O Ministério de Educação e Pesquisa, responsável pela formulação e implementação de políticas públicas relacionadas ao sistema educacional estoniano.
Ademais, outro importante aspecto da educação da Estônia, o qual contribui para o seu sucesso, é a estratégia digital, iniciada em 1996 com o Programa Salto do Tigre.
O Programa Salto do Tigre (1996) foi lançado por Toomas Hendrik Ilves, Jaak Aaviksoo e Lennart Georg Meri com base em três objetivos centrais: computadores e internet para todas as escolas, treinamento básico de TIC para os professores e material didático (do treinamento) em estoniano para as instituições de ensino geral.
O primeiro passo era fornecer para todas as escolas computadores e acesso à internet. Em 2000 todas elas já possuíam computadores e, no ano seguinte, acesso à internet.
Já os cursos básicos e o material didático de TIC para o treinamento dos professores foram criados logo em 1997 e atualizados em 1999, com a maioria dos professores estonianos capacitados para uso das tecnologias como ferramenta de ensino ao final desse mesmo ano.
A estratégia digital no sistema educacional da Estônia não parou por aí. Em 2012, mais dois importantes programas para a tecnologia educacional estoniana foram lançados, um deles sendo o programa ProgeTiger.
O objetivo do programa era melhorar a alfabetização e competência tecnológica dos professores e estudantes do país. O programa é responsável pela capacitação das crianças e dos jovens com as habilidades necessárias para o futuro. O programa aborda temas como robótica, programação, ciência, tecnologia, engenharia e matemática, os quais são fundamentais para o desenvolvimento da capacidade de resolução de problemas, da criatividade, do pensamento crítico e do trabalho em equipe.
Hoje, a estratégia educacional estoniana tem como prioridade a Lifelong Strategy 2020, que entende que o aprendizado do indivíduo deve ser uma parte integral de toda sua vida, independente da sua idade. Para isso, o objetivo da Estratégia é entender o papel de todas as partes envolvidas no processo de aprendizagem e estimulá-lo de diversas formas, seja através de instituições culturais, como museus, ou de maneiras mais tradicionais, como cursos e centros de ensino.
“A ideia é tornar a população estoniana aprendiz durante toda a vida, oferecendo oportunidades educacionais para crianças e adultos, estes jovens ou idosos“, diz Guilherme Struecker, professor brasileiro na Estônia e mestre em inovação educacional pela Tallinn University.
No aprendizado digital, a estratégia foca no ensino mais eficaz e eficiente para o indivíduo, a fim de assegurar uma melhora das habilidades digitais de toda a população, garantindo o seu acesso à nova geração de infraestrutura digital.
Comparando com o Brasil, a brasileira Karen V. Ordones, fundadora e CEO da plataforma educacional Tutor.id, explica o objetivo da educação para o futuro do governo estoniano: “Enquanto na educação brasileira temos o objetivo de treinar adolescentes para passar em provas e concursos, a educação estoniana tem como objetivo criar uma nação com pensamento crítico que resolverá os problemas do futuro (…). O governo Estoniano analisa as tendências do mercado, e adapta seu sistema educacional de acordo com as necessidades de mão-de-obra que teremos no futuro“.
Alguns players ajudaram e ajudam no desenvolvimento dessa estratégia digital do ensino na Estônia, tanto na criação de ferramentas de gestão, como sistemas de apoio para facilitar o aprendizado. Algumas das principais ferramentas e sistemas de gestão são:
- O eKool, uma das ferramentas de gestão escolar mais usadas na Estônia, que reúne alunos, familiares, escolas e órgãos de fiscalização em um só lugar, baseado na web e de fácil acesso;
- O schoolaby, plataforma de gerenciamento de aprendizagem que permite o ensino tanto de forma remota, como híbrida e, utiliza o padrão LTI e xAPI, onde os resultados dos alunos são coletados automaticamente, facilitando o processo de avaliação para os professores;
- O opiq, que permite a digitalização do currículo escolar, o melhor acesso à educação de qualidade e a possibilidade de uma abordagem educacional estratégica com base em dados coletados pelo programa.
Já os principais players que desenvolvem soluções para facilitar o ensino, são:
- O Futuclass, jogo de plataforma educacional com lições gamificadas para tópicos de química e física para alunos de 7 a 9 anos;
- A Clanbeat, uma plataforma de apoio ao crescimento dos alunos e das comunidades durante o processo de aprendizagem, a qual oferece um software para a integração agradável e significativa entre a comunidade escolar e o aluno e seus familiares, buscando o desenvolvimento contínuo da criança, a cultura e o envolvimento entre alunos e professores;
- O 99math, uma plataforma de jogo social gratuita que oferece uma maneira divertida de praticar matemática, onde os alunos podem se reunir virtualmente com os colegas e jogar e competir entre si, enquanto praticam matemática e desfrutam da sensação de jogo.
Estônia e o Brasil
A Estônia começou a chamar a atenção do Brasil quando foi reconhecida como a terra do Skype e dos serviços públicos digitais – 99%. O país também chamou a atenção do mundo quando se tornou referência na área de cibersegurança, devido a um ciberataque em 2007, o qual a Estônia repeliu.
Mais uma vez foram foco de atenção pela forma como lidaram com a pandemia do novo coronavírus (2020-2022) no uso de sua estrutura digital, se tornando referência, novamente, no uso da tecnologia na área da educação.
Além disso, entendemos que a Estônia tem um perfil complementar ao do Brasil.
Enquanto o país báltico é pequeno em tamanho populacional e territorial, mas gigante na desburocratização e digitalização, o Brasil é enorme territorialmente e em tamanho populacional, mas ainda altamente burocrático e analógico.
Como exemplificado por Guilherme Struecker, a desburocratização estoniana se traduz, inclusive, na área de educação, com a flexibilidade que o currículo nacional permite às escolas. “(…) o currículo nacional para o ensino fundamental na Estônia é um documento de 15 páginas, fácil de ser compreendido, adaptado, e posto em prática. Já a base nacional curricular comum do Brasil tem 597 páginas, 395 destas destinadas ao ensino fundamental“.
Ademais, a flexibilidade do currículo nacional também permite a autonomia dos educadores, como mostrado por Karen V. Ordones: “Com a carta branca do governo, os professores são os maiores agentes de mudança, e se utilizam da grande liberdade pedagógica para criar projetos inovadores e experimentais, que estimulam a curiosidade e o pensamento crítico”.
O Brasil também entrou no radar da Estônia. Com mais de 800 e-residentes brasileiros, o Brasil se tornou sede para um dos escritórios do e-Residency da Estônia. Já no Startup visa, modalidade de visto concedido para startups, o Brasil se encontra como top 3 nos países mais contemplados no programa.
No entanto, mesmo no radar da Estônia, o setor de e-education ainda é pouco explorado nas parcerias Brasil-Estônia, abrindo espaço de colaboração em várias frentes dentro do setor.
Tendências e Desafios
Como já citado, a Lifelong Learning Strategy é um dos focos principais do governo estoniano atualmente para dar continuidade na construção de uma sociedade igualitária e digital, preparada para a nova geração de tecnologias.
Além disso, a estratégia educacional da Estônia também foca no preparo e ensino, tanto intelectual quanto emocional do indivíduo, a fim de contribuir e promover a qualidade de vida no país e o desenvolvimento sustentável global.
Para isso, o ensino personalizado é a chave para o bem-estar do estudante e para o sucesso da educação estoniana. A abordagem educacional focada no estudante somada a lideranças educacionais com autonomia, permite um maior aproveitamento do aprendizado pelo indivíduo, engajando-o no processo de aprendizagem.
Tal abordagem personalizada é importante para diminuir o gap existente entre a performance de meninos e meninas no PISA, e a taxa persistente de meninos com baixa performance, um desafio persistente na educação estoniana, assim como a diferença nos resultados de escolas com ensino em outro idioma, como o russo, que performam abaixo da média da OCDE.
Ademais, tal abordagem é importante também pela priorização do bem-estar e da qualidade de vida do indivíduo, já que, segundo pesquisa do Statistics Estonia, nos últimos anos tem aumentado o número de problemas de saúde mental no país.
Os números mais preocupantes são as taxas de suicidio de jovens e de violência doméstica. De acordo com a pesquisa, os casos de saúde mental causam perdas referentes a 2,8% do PIB do país, equivalente a 572 milhões de euros por ano .
Além disso, com o envelhecimento da população, torna-se mais difícil a renovação da força de trabalho em todos os setores do país, como o da educação. Segundo o governo estoniano, 1 a cada 4 estonianos terá 65 anos ou mais em 2035, enquanto o número da população economicamente ativa (PEA) vai diminuir em quase 44 mil.
O desafio do país é atrair novos talentos para o setor, garantindo a sustentabilidade do sistema educacional da Estônia. Uma das formas de realizar isso seria pelo aumento dos salários dos profissionais, uma vez que o país possui pagamento condizente com a média salarial da OCDE, mas sua performance é acima da média da OCDE. Sendo assim, é necessário maior valorização desses profissionais e equiparar o salário com a performance do setor.
Por fim, para ser considerada a melhor educação do Ocidente, é necessário um processo de constante construção e evolução. Na estrutura de e-education, para os próximos 5 anos, o país vai buscar modernizar a estrutura física das escolas e a velocidade no acesso à internet, aspectos necessários para a nova geração de tecnologias.
Leia também: Retrospectiva do Mercado de Educação Básica
Conclusão
Portanto, é visto que a abordagem estoniana na educação é centralizada no estudante, e no seu desenvolvimento intelectual e emocional para toda a sua vida, buscando a geração de uma força de trabalho engajada e educada, capaz de criar valor para a sociedade e preparada para o futuro.
A Estônia recebe aproximadamente 10 mil participantes de delegações por ano e o Brasil ainda pode se beneficiar muito com essa relação.
Para concluir, espera-se que, com este texto, seja possível identificar as principais oportunidades e possibilidades que o ecossistema estoniano oferece. Que possibilite, para quem o lê, a conexão e o encantamento com a Estônia, um país pequeno em território mas gigante em tecnologia e educação.
No Estônia Hub acreditamos que o contato direto entre a Estônia e outros países serve de ignição para novas ideias, projetos e sonhos. Por isso, nosso objetivo é replicar as melhores práticas do modelo de transformação estoniano no mundo.
Raphael Fassoni é empreendedor e consultor de negócios internacionais. Formado em relações internacionais pela UNESP e Universidade de Dresden (Alemanha), tem especializações em consultoria estratégica na Harvard University e liderança pela Stanford University. No Brasil, foi diretor comercial da TOTVS e atualmente como cofundador do Estônia Hub, empresa focada em acelerar a transformação digital e gerar novos negócios e parcerias entre Brasil e Estônia nos setores público e privado.
Julia Ramos é graduanda em relações internacionais na ESPM, com especialização em relações governamentais. No Estônia Hub atua na área de novas iniciativas, apoiando novas frentes de atuação da empresa.