Empreendendo na educação básica no setor público: um guia com 5 modelos de negócios

Durante a faculdade, realizei um intercâmbio de 1 ano via Ciências Sem Fronteiras para estudar tecnologia criativa na University of Twente, na Holanda. Em uma das matérias acadêmicas, construí e testei em escola pública um gadget que ensinava pensamento matemático para crianças de 4 a 6 anos de idade. O gadget permitia que o jovem embarcasse em uma aventura com um ratinho viajante. A estudante via imagens retratando a viagem na tela de um tablet que ficava em cima de uma mesa.

Após mostrar diversos desenhos, o tablet mostrava um contorno de um desenho como uma casa que o ratinho deveria construir em algum local do globo. A aluna deveria então usar 7 peças do clássico jogo Tangram para colocar em cima do contorno e montar a imagem — trabalhando pensamento geométrico, visual e matemático. Uma webcam de um notebook posicionado em cima do tablet reconhecia se o objetivo estava correto e dava um feedback visual.

Ao ver uma menina holandesa se divertir e aprender com o objeto que eu havia ajudado a criar, eu entendi o que queria fazer: usar tecnologia para enriquecer o ensino e a aprendizagem. Não prossegui com a ideia à época, mas depois vi uma startup chamada OSMO criar algo bem parecido e ser vendida por US$ 120 milhões para a Byju’s — isso me faz lembrar que ideias não são suficientes, execução é o que importa.

Voltei ao Brasil e passei os 3 anos seguintes aprendendo sobre educação pública no Instituto Ayrton Senna. Pude enxergar fatos massacrantes da realidade de desenvolvimento do Brasil: mais de 80% dos jovens estão nas escolas não-privadas, aonde não são preparados nem para o presente e nem para o futuro. Se você quer ver alguns destes dados, veja meu post aqui sobre 11 problemas educacionais para empreendedores resolverem. Entendi o que era realmente atuar com escala — o Instituto impacta 1,5 milhão de alunos anualmente — e aprendi muito sobre educação e política pública. Mas ao interagir com empreendedores criando as mais diversas EdTechs, descobri que meu próximo passo seria estar deste lado.

Do Instituto resolvi empreender na ChatClass junto ao Jan Krutzinna. Após 2 anos experimentando diferentes modelos de negócios, entre eles a venda para pais, alunos, professores, governos, sistemas de ensino, distribuidores, escolas, grupos de escolas, startups… aprendi algumas coisas sobre como unir impacto a um modelo de negócios sustentável. Compartilho abaixo minha visão após errar bastante e aprender à força algumas coisas.

Modelos possíveis para atuar com impacto e sustentabilidade financeira no setor público

1) B2ONG: Vender para ONGs, fundações e institutos

*B2ONG significa Business to ONG (Negócio para Organização Não Governamental)

✅ Autoridade e prova social: Use essa tática para adquirir autoridade no mercado. Se você conseguir vender para um instituto, isso vai dar uma prova social da sua solução para futuras vendas para governos, editoras, sistemas de ensino e até para professores e gestores.

✅ Avaliação de impacto: Ao longo da sua jornada você vai ser questionado inúmeras vezes sobre qual o impacto da sua solução. Alguns institutos como o Ayrton Senna, Fundação Lemann, Instituto Natura e outros possuem um trabalho bem rigoroso neste sentido. Trabalhe com eles para aprender ou financiar sua própria avaliação.

✅ Recrutamento de talentos: Justamente por conta da inovação educacional hoje ser limitada às fundações, os profissionais apaixonados pela área estão nelas. Trabalhar com fundações vai te ajudar a conhecer e recrutar boas pessoas. Traga para elas as vantagens relacionadas à alta velocidade do trabalho, potencial de impacto, alto grau de inovação e potencial de retorno financeiro prazo caso sua startup dê certo.

✅ Desenvolvimento de produto: O governo é avesso à inovação, então encontrar uma oportunidade para colocar seu produto para rodar pode ser mais fácil por meio dos Institutos. Uma dica é não falar com o pessoal de educação, mas sim com as pessoas de inovação destas instituições. Eles vão comprar mais facilmente sua ideia e te ajudar a influenciar o time interno a fazer uma aposta.

❌ Isso não vai te trazer escala: Vender para fundações não vai te dar escala. Há um mercado limitado de fundações e institutos e todas possuem suas próprias agendas de atuação. A probabilidade da sua solução estar na agenda de várias delas é limitadíssima. Além disso, o orçamento delas não vai ser grande para que você possa criar uma grande empresa com base neste modelo.

❌ Risco de produto: “E se você fizer desse jeitinho, mas mudar toda a solução para essa área aqui?”. Lembre-se: seu produto só vai sobreviver se ele resolver dores reais, não confunda autoridade educacional com habilidade de criar uma inovação digital. Eu disse que as ONGs te ajudam a validar o produto, mas cuidado para não ouvir conselhos de quem há muito tempo não pisa no chão de escola e que nunca criou um serviço digital.

❌ Vôo de galinha com suas finanças: Você corre o risco como empreendedor de ficar num constante voo de galinha correndo atrás de ONGs que vão fechar projetos de pequeno porte ou por pouco tempo. Estudo de caso sozinho não constrói empresa.

2) B2G: Venda direta para governos

*B2G significa Business to Government (Negócio para Governo)

✅ Grande escala : Uma secretaria estadual no Brasil pode ter de 500 mil a 3 milhões de alunos. Isso quer dizer que sua solução vai necessariamente adquirir uma grande escala — o que com certeza é seu objetivo.

✅ Alto Impacto: Aqui de fato você vai conseguir ter um impacto verdadeiro nos professores, alunos e escolas. Os grandes problemas educacionais estão concentrados no setor público. Se você é uma pessoa empreendedora em educação, então há grandes chances de você estar nessa para causar a diferença.

❌ Falta de pagamentos: As chances disso acontecer não são pequenas e, combinando com a alta escala, pode acabar com o seu negócio. Imagine alocar grande porcentagem do seu time em um projeto, entregar com qualidade o que foi combinado e então ter que fechar a empresa alguns meses depois.

❌ Demora no pagamento: Como empreendedor, eu já vendi para governo e fiquei vários meses sem receber. Este é um problema que acontece e, mesmo sendo menos drástico como o anterior, ele também pode causar a falência. Se seu fluxo de caixa depender deste pagamento, sua empresa pode ficar em risco.

❌ Processo demorado: Veja, o governo já realiza compras relevantes e constantes de vários serviços. O PNLD (Programa Nacional do Livro e do Material Didático) movimenta bilhões e paga pelos custos fixos de grandes editoras brasileiras. O problema é na aquisição de inovação. Vender uma plataforma com inteligência artificial, conteúdo personalizado e avaliação não é tão simples como vender um livro. Isso faz com que toda forma de compra seja demorada e que haja uma barreira de entrada, que é a falta de conhecimento nos empreendedores sobre como realizar a venda para governos.

3) B2B2G: Venda para empresas via iniciativas de CSR ou ESG

*B2B2G significa Business to Business to Government (Negócio para Negócio para Governo). CSR significa Corporate Social Responsibility (Responsabilidade Social Corporativa). ESG significa Environment, Social and Governance (Meio-ambiente, social e governança).

✅ Há dinheiro disponível: A quantidade de capital no Brasil alocada para iniciativas de CSR ou ESG é enorme e pouco explorada. Indo além, o ESG ganha tração no Brasil e o S de Social vai levar várias corporações a investirem em projetos sociais, que podem estar ligados à educação.

 O melhor de dois mundos, capital e escala: Se você conseguir destravar um modelo escale em diferentes departamentos de RH e se tiver articulação no setor público, você pode atuar com alto impacto e sem os problemas financeiros da venda para governo. Importante dizer que, na prática, seu modelo de negócios vai ser o mesmo de uma ONG — elas buscam capital de empresas para financiar projetos para o setor público.

 Ganhe tração mais rapidamente: Se você quer provar seu produto ou desenvolvê-lo ainda mais rapidamente, essa pode ser uma boa forma de financiamento. Feche alguns projetos com empresas e use isso para ganhar autoridade social e financiamento para desenvolvimento da sua solução.

❌ Estratégia das empresas ainda é fraca: Apesar de haver capital alocado nas corporações, a maior parte das iniciativas é pequena e feita somente para deixar a newsletter do RH mais bonita. Isso gera um esforço muito grande de vendas com pouco resultado.

❌ Customização para o social que a empresa quer: Um ponto de atenção é você ter que atender o que o RH quer e, por consequência, não focar na sua solução e no problema que você quer resolver. É importante ter uma certa flexibilidade mas cuidado para não acabar criando algo totalmente diferente do que queria, só porque há capital ali.

4) Freemium: uma parte gratuita com oferta paga para professores, pais e/ou alunos.

*Freemium significa gratuito com oferta de algo pago.

✅ Alto impacto: Ao ter uma camada gratuita você garante que mesmo aqueles que não tem condições — os que mais precisam — vão poder acessar a sua solução. Pensando em equidade dentro da sala de aula, é importante você estruturar seu modelo para que os que não podem arcar pela oferta paga não sejam prejudicados por isso.

 Modelo de negócios inovador: este modelo não é muito explorado no Brasil, porém já possui grandes unicórnios na China. Por isso, há riscos e oportunidades grandes a serem explorados. Um exemplo de quem implementou algo parecido para o setor privado é o AppProva, que distribuía sua solução gratuita e depois vendia para as escolas dos professores que adotassem. A solução foi vendida para a SOMOS Educação (hoje chamada de VASTA).

 Facilidade na entrada: Ao não ter um custo que a secretaria tenha que arcar, você vai ter sua entrada facilitada para projetos em parceria. É assim que institutos e fundações garantem grande articulação com o setor público, não há custo para eles.

❌ Unit economics apertado: você precisa garantir que sua conversão tem previsibilidade suficiente para você manter todo o modelo gratuito. Isso entra em custos de implementação do gratuito (não vão ser zero, não se iluda), nuvem, tecnologia, dados e quaisquer outros custos que você tenha.

5) B2C para alunos

*B2C significa Business to Consumer (Negócio para consumidor)

✅ Modelos offline já se provaram: Kumon, Escolas de inglês, Reforço escolas são setores tradicionais, sem uso de tecnologia, que já movimentaram bilhões de reais no Brasil. Claramente existe a oportunidade para um “Kumon digital” no país que use a tecnologia para ter mais capilaridade e custos menores de implementação.

✅ Demora, mas compensa: O Descomplica tentou inúmeros projetos com financiamento de fundações, empresas e demorou até que realmente houvesse uma massa crítica de alunos. Porém, hoje ele nada de braçada no segmento de pré-vestibular e recentemente até expandiu para criar sua própria faculdade. Aqui o mesmo vai acontecer contigo: a construção de uma marca e todos os benefícios que vem com ela (expansão em desenvolvimento de negócio, explorar novos canais de distribuição, criar novos produtos) vai demorar.

 Grande escala: Ao ter uma camada gratuita você tem um diferencial enorme no mercado e pode explorar isso para ganhar escala de forma mais rápida.

✅ Do Brasil para o mundo: O Kahoot foi criado na Noruega e é utilizado no mundo inteiro, a Brainly nos EUA e é febre em diversos países. Empresas com modelo B2C em educação e que resolvam problemas encontrados mundialmente possuem a vantagem de poderem expandir para diferentes partes do globo. Isso não aconteceria se você é um especialista em vender por meio de licitações para secretarias municipais brasileiras.

❌ Tração devagar: Educação só é investimento para aqueles que tiveram um alto retorno em suas vidas por meio dela, o que é o caso das classes mais altas do país. Para as classes sociais mais baixas, educação é uma custo. Isso significa que mesmo que você tente trazer uma abordagem bem B2C para seu produto, há dificuldades em emplacá-lo com velocidade e com baixo consumo de capital.

❌ Quem usa é diferente de quem paga: Se a venda vai ser para crianças ou jovens, então você precisa incluir a pessoa que é dona do cartão de crédito e da decisão de compra: a mãe ou o pai. Isso vai requerer que você tenha múltiplos públicos tanto para marketing. Se sua solução é para estudantes com mais de 15 anos, não precisa fazer marketing para os pais, mas se eles são mais jovens, não há como fugir.

❌ preço, preço, preço: Se você quer servir o setor público então saiba que preço vai ser extremamente importante. Considerando que estas famílias não conseguem pagar 500–700 reais por mês em uma escola privada, então qualquer solução que chegue perto deste valor será muito cara. Aqui os tickets são de 50 reais para menos.

Leia também: 10 dicas de Gestão Comercial de Escolas

Concluindo: há pelo menos 5 formas para causar impacto positivo e ainda criar um grande negócio

A educação pública é onde podemos causar uma transformação verdadeira que irá elevar o país de patamar. Os desafios para se trabalhar com este setor são enormes, porém, há pelo menos 5 formas de você estabelecer sua startup no setor público: B2ONG, B2C, B2B2G, B2G e Freemium. Todas possuem pontos positivos e negativos, mas minha sugestão é:

  1. B2ONG: use para obter tração inicial e prova social
  2. B2B2G: use para ter um ganho de escala e para fortalecer sua marca
  3. B2C ou Freemium: use para ganhar escala e sustentabilidade financeira de longo prazo
  4. B2G: não recomendo mas você pode usá-los para ganhar escala
Conteúdo desenvolvido e publicado originalmente no site Garagem Educação e repostado em parceria com o site Mercado & Educação. 

Amaral Medeiros
Empreendedor @ ChatClass, acelerada por Google / Facebook e com 400 mil alunos em 🇧🇷 🇩🇪. Co-autor de livro de Stanford sobre ensino de coding, Ex-Líder Transfor. Digital @ Instituto Ayrton Senna

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